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sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Entre a cruz e a estrela de Davi: A memória judaica nas famílias de Sobral e Groaíras

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A análise da presença judaica em Sobral e nas áreas vizinhas, assim como a ativação da economia de Sobral devido ao investimento judaico, é abordada pelo destacado historiador sobralense, Padre João Mendes Lira, que deixa saudades e é lembrado com carinho. 

Resumidamente, Lira mencionava que algumas famílias de Sobral e locais circunvizinhos eram descendentes de judeus conhecidos como "cristãos novos", oriundos de Portugal. Devido às constantes perseguições promovidas pelo Tribunal do Santo Ofício e pela Coroa Portuguesa, esses indivíduos foram forçados a se refugiar em outros lugares, incluindo o Brasil durante o período colonial. Além disso, Lira relatou diversos costumes e tradições de famílias em Sobral e Groaíras que mantinham estreitas conexões com o judaísmo, mas que foram ocultadas ao longo do tempo. Ele também revisitou acontecimentos trágicos do passado sobralense, resultantes da perseguição contra aqueles considerados de "sangue infecto".

O termo "Cristão Novo", conforme a perspectiva de Kaufman, refere-se a judeus que foram convertidos quase à força para evitar a morte, o exílio ou a perda de propriedade. Alguns foram acusados de "judaizar", ou seja, de praticar secretamente a religião de seus antepassados, o que resultou em acusações de apostasia em relação ao batismo. Entretanto, dentro da sociedade colonial, os preconceitos ainda eram predominantes. Existia uma estrutura social que diferenciava os cristãos-velhos, que eram católicos antes da conversão forçada dos judeus portugueses em 1497, dos cristãos-novos, que eram judeus convertidos recentemente e seus descendentes. Este sistema de distinção se manteve até o século XVIII. A ideia de "pureza de sangue" foi utilizada no século XVI para identificar aqueles que, racial e politicamente, se encaixavam no ideal do português branco e cristão-velho. Os descendentes dos cristãos-novos tinham restrições para entrar na carreira militar ou exercer cargos políticos.

De acordo com Pierre Bourdieu, as narrativas de vida não seguem um padrão de progresso linear, com um início, intermediários e um término. A realidade é fragmentada, composta por diferentes elementos sobrepostos, cada um singular e mais difícil de compreender, porque aparece de maneira aparentemente aleatória, sem planejamento. No entanto, não é impossível resgatar as narrativas de vida ao se abordar a memória e a identidade social, uma vez que ao se refletir ou mesmo recordar a memória de um grupo, é provável que se identifiquem características comuns e recorrentes ligadas ao seu passado.

A introdução da Inquisição no Brasil ocorreu em torno de 1591, quando o Tribunal de Lisboa fez sua primeira inspeção em Pernambuco e Bahia, impulsionada pela chegada substancial de cristãos-novos ao Brasil, muitos dos quais foram atraídos pelo crescimento acelerado da economia açucareira. Com algumas possíveis exceções, podemos dizer que esse período foi, inicialmente, caracterizado por uma certa calma, onde judeus e cristãos-novos podiam expressar sua fé em sinagogas caseiras improvisadas, permitindo que eles se casassem abertamente, livres das severas punições e proibições ligadas à contaminação ritual e sangue, frequentemente impostas por grupos religiosos mais conservadores e setores da população.

Portanto, é possível afirmar que o ambiente relativamente pacífico e a "livre" expressão de fé experimentada por alguns trouxeram uma sensação de liberdade, especialmente para os novos judeus que se converteram ao cristianismo, assim como para aqueles que não estavam interessados em praticar o judaísmo, mas que buscavam um lugar sereno para viver do outro lado do oceano.

É registrado na história que durante o século XVII, novas atividades dos agentes do Santo Ofício ocorreram no Brasil colonial, e é importante destacar como a Inquisição Moderna, predominante em Portugal e Espanha, possuía características únicas. Diferentemente da Inquisição Medieval, contava com uma estrutura fixa, um sistema organizado e hierarquizado de agentes que atuavam continuamente, equipados com estratégias cruéis. Nos séculos XVII e XVIII, as perseguições promovidas pela Inquisição atingiram seu auge em Portugal e no Brasil colonial.

Os agentes do Santo Ofício tinham a capacidade de fazer com que indivíduos delatassem qualquer pessoa, incluindo filhos, pais, avós, irmãos, amigos ou inimigos. Aqueles que tivessem qualquer proporção de “sangue impuro”, ou “sangue judeu”, estavam sempre em risco de serem presos e enviados a Lisboa para julgamento pelo crime de heresia judaica. Quanto a esse crime, podiam ser inocentes ou culpados – o Santo Ofício demonstrava maior interesse em capturar cristãos-novos do que hereges; se fossem convertidos, certamente eram considerados culpados – o judaísmo era visto, para os inquisidores, como algo que era transmitido através do sangue. O Tribunal “precisava de testemunhos”, requerendo longas filas de acusados nos autos de fé para que, como afirmou D. Luís da Cunha, justificassem o deplorável estado do Reino português. (GORENSTEIN, 2012, p. 01).

Não se tem clareza sobre quando exatamente a imagem do judeu começou a ser distorcida e marcada negativamente, em um movimento de antissemitismo que certamente evoluiu gradualmente ao longo de milênios. Esse desenvolvimento se baseou, em grande medida, na noção de uma separação essencial entre cristãos e judeus, como é possível observar nas escrituras do Novo Testamento da Bíblia Cristã. Assim, os judeus não se integravam facilmente nos grupos cristãos (principalmente católicos) em expansão, que se tornavam progressivamente mais dominantes e opressores.

É relevante mencionar que a Inquisição teve duas fases, a Medieval e a Moderna. Na sua etapa inicial, que abarcava países como Itália, França, Alemanha e Portugal, a inquisição medieval aplicava penalidades relativamente "mais brandas" em comparação aos horrores vistos em períodos posteriores da história. A excomunhão era uma penalidade comum, embora a tortura já fosse amplamente utilizada e permitida pelo papa desde 1252, como um meio para obter confissões. Na sua segunda fase, a Inquisição moderna ocorreu entre os séculos XV e XIX, especialmente em Portugal e na Espanha. Esses países desenvolveram métodos próprios de investigação, vigilância e tortura.

Os judeus não são um povo com um passado histórico definido, nem mesmo um grupo arqueológico. Eles são um povo que se relaciona com a geologia. Com suas fendas e colapsos, bem como camadas e magma ardente. Os registros dessa comunidade devem ser avaliados em uma escala de mensuração diferente. 

“Os Judeus”, Yehuda Amichai. (OZ, 2015, p. 121).

As sesmarias que foram concedidas a Antônio da Costa Peixoto, de origem portuguesa, e a Leonardo de Sá, da Olinda, em 1702, pelo capitão-general de Pernambuco, Dom Fernando Martins Mascarenhas de Alencastro, deram origem a um centro de atração, formando uma pequena comunidade ao redor da chamada fazenda Caiçara. Este é o embrião do que hoje conhecemos como Sobral, no Ceará, situada na margem esquerda do rio Acaraú. Entre 1731 e 1742, é provável que José de Xerez Furna Uchoa, um descendente de judeus e cristãos-novos, tenha se mudado para lá, após uma visita à Caiçara. Aproveitando a beleza do local, ele decidiu estabelecer-se na então vila de Januária, tornando-se proprietário de terras e alcançando considerável prestígio. Originário de Goiana, Pernambuco, que é um local de onde muitos colonizadores do Ceará se originam, José é filho de Francisco Xerez Furna, capitão e juiz de órfãos, e de Inês Vasconcelos Uchoa. Em 5 de abril de 1758, ele foi nomeado almotacé para atuar na freguesia da ribeira do Acaraú durante os meses de julho, agosto e setembro desse mesmo ano. 

No dia 26 de julho de 1758, foi eleito oficial da Câmara de Fortaleza para a mesma ribeira, assumindo o cargo de juiz ordinário da ribeira do Acaraú em 17 de agosto de 1758, com a responsabilidade de servir no ano seguinte. Como juiz de órfãos e vereador na Câmara, foi posteriormente nomeado capitão-mor das Entradas do Acaraú e capitão-mor das ordenanças. No entanto, ele enfrentou uma acusação de um rival, que o denunciou por ter ascendência de cristão-novo, alegando que sua família não tinha o valor que ele acreditava merecer. Essa acusação de "sangue impuro" reflete o racismo português no exterior. O caso de José de Xerez representa, de certa forma, a mentalidade no Ceará do século XVIII, influenciada pelos estatutos de limpeza de sangue que predominavam no mundo ibérico. Na verdade, na segunda metade do século XVIII, a "pureza de sangue" ainda era uma questão importante em Sobral, afetando aspectos da vida social, religiosa, econômica e militar. 

Contudo, isso não indica uma obsessão generalizada sobre o tema, que surgia em momentos mais específicos e pontuais. A questão da "limpeza de sangue" nas interações sociais em Caiçara, na capitania do Ceará Grande, expõe intrigas e disputas de interesses entre líderes locais em uma região remota. Assim, isso representa um aspecto de um fenômeno social e cultural gerado pela ideologia vigente do Santo Ofício, visto que, apesar de sua longínqua ascendência judaica (dez gerações) e cristã-nova (seis gerações), José de Xerez se comporta como um cristão genuíno. Isso se evidencia em sua vida pública com base na documentação disponível até o presente. Essa visão da vida portuguesa, observável nas instituições e na vida cotidiana das pessoas enquanto a distinção social criada pelo “mito do sangue puro” permanece, se estende além-mar, situa-se nas colônias e se propaga das áreas litorâneas para os interiores. (ALMEIDA, 2021, p. 169).

Além da participação nas câmaras e irmandades, era comum a obtenção de patentes. Normalmente, para conquistar essas patentes, os membros da elite redigiam cartas de solicitação e, através do Conselho Ultramarino, solicitavam essas honrarias. Eram cartas solicitando e confirmando os postos de capitães e coronéis. Como vimos no exemplo de José Xerez de Furna Uchôa, essas patentes podiam ser renovadas, ou os homens poderiam ser promovidos a outros cargos. Assim, uma elite robusta foi sendo formada, que exercia controle sobre a administração local e contava com o apoio da Coroa, simbolizado por essas concessões. OLIVEIRA, Adriana Santos de. Pecuária, agricultura, comércio: dinamização das relações econômicas no termo da vila de Sobral (1773-1799) – 2015, p. 115.

Segundo, no artigo “Senhores de terras e de gentes: os poderosos senhores das armas na capitania do Ceará (Século XVIII)”, José Eudes Arrais Barroso Gomes menciona que em uma Carta Patente datada de 2 de setembro de 1778, foi designado José de Xerez Furna Uchoa como Capitão-Mor de Ordenanças da Vila Distinta e Real de Sobral, pela Câmara, que o recomendou por seus laços com uma família de prestígio e possessões. Entretanto, dois anos depois, em 5 de outubro de 1780, a rainha D. Maria I recebeu em Lisboa uma representação de habitantes da Vila que faziam queixas sobre abusos e injustiças perpetradas por José de Xerez, que havia agido imprudentemente em suas funções, inclusive enfrentando o Escrivão da Câmara e o Tabelião, que se opuseram a ajudá-lo e a suas condutas. Os autores desse protesto solicitaram à rainha uma intervenção, ameaçando deixar o lugar, o que é uma forma de expressar o abandono da Vila, o que poderia resultar em um declínio na arrecadação de impostos que iam para a Coroa, revelando que os moradores da capitania cearense valorizavam os dízimos reais em nome de sua soberana. (Gomes, 2007: 296).

É provável que determinadas instituições de Sobral e sua área metropolitana tenham adotado valores e crenças disseminadas pela Coroa Portuguesa e pelo Tribunal do Santo Ofício Luso, que estiveram presentes até a metade do século XVIII em todo o Brasil colonial. É fundamental também investigar os aspectos obscuros da trajetória de Xerez, especialmente em Sobral. Como ele idealizou e administrou esses episódios e os reinterpretou dentro de uma realidade desfavorável aos cristãos-novos e judaicos, num ambiente de possível intolerância e penalização? É crucial analisarmos o comportamento negacionista e antissemita que Xerez frequentemente manifestou, provavelmente como uma estratégia de sobrevivência, ou por acreditar que sua ascendência judaica representava um grande fardo, um mal a ser eliminado à custa da negação de sua identidade e do apagar de sua pertença aos Cristãos-Novos.

Com uma vida que combina tradição e lenda, Branca Dias é vista como uma das ícones do Brasil Colonial e de Pernambuco. No século XVI, ela se destacou ao ser a primeira mulher portuguesa a fundar uma “esnoga” (sinagoga) em suas terras, a primeira “mestra laica de meninas” e uma das pioneiras como “senhora de engenho”. Denunciada por sua mãe e irmã, Branca foi aprisionada pela Inquisição nos Estaus de Lisboa. Ela chegou ao Brasil acompanhada de sete crianças, reunindo-se com seu marido, Diogo Fernandes, e residindo entre Camaragibe e Olinda, onde tiveram mais quatro filhos (ela também educou sua enteada, Briolanja Fernandes). Durante a primeira visita do Santo Ofício ao Brasil, no final do século XVI, os filhos e netos de Branca Dias foram presos sob a alegação de uma presumida reconversão ao judaísmo e enviados a Lisboa, onde sofreram penalidades em autos-de-fé.

Com base em registros, referências históricas e relatos orais sobre a colonização da antiga área de Riacho Guimarães, atualmente conhecida como Groaíras, por volta do século XVIII, surgem elementos interessantes devido às teorias e narrativas relacionadas a um dos primeiros colonos desse local, o cristão-novo Manoel Madeira de Matos, ancestral de algumas famílias que residem em Groaíras hoje. Ele uniu-se em matrimônio com uma filha de Antônio de Albuquerque Melo e Luzia Guimarães de Albuquerque Melo, que era neta do conhecido fundador de Groaíras, o Açoriano Alferes Lourenço Guimarães, também considerado cristão-novo. 

Além disso, dentro do acervo do Cartório de Ofícios e Notas e de Registros - Comarca de Groaíras/CE, existe um documento que certifica a doação realizada por Manoel Madeira de Matos e sua esposa Francisca de Albuquerque Melo de meia légua de terras em forma retangular, em um local denominado Lagoa de Santa Maria, nas margens do rio Acaraú, estendendo-se deste rio em direção à nascente, além da doação de sessenta vacas e sete animais de carga. O propósito dessa doação foi atender à exigência de criação do patrimônio da paróquia e a futura edificação da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, no ano de 1884.




Texto adaptado por Eugênio Pacelly Alves



Referências bibliográficas:

Manoel Carrasco e Silva. Disponível em: >(https://www.geni.com/people/Manoel-Carrasco-e-Silva/6000000013764109057)<. Acesso em 28 de outubro de 2024.

ALMEIDA, Nilton Melo. Cristãos-novos, seus descendentes e Inquisição no Ceará. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2021.

OZ, Amós, & OZ-SALZBERGER, Fania. Os judeus e as palavras. Trad. George Schlesinger. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Lisboa: Difel, 1989.

BOURDIEU, Pierre. O camponês e seu corpo. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 26, p. 83-92, 2006.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.

BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

GORENSTEIN, Lina. Ter origem judaica era sinônimo de culpa?. In: Revista de História da Biblioteca Nacional: Dossiê Inquisição. Ano 7, nº 73, outubro de 2011.

KAUFMAN, T. N. Passos Perdidos, História Recuperada. A presença judaica em Pernambuco. 4. Ed, Recife. Editora Bagaço, 2000.

OLIVEIRA, Adriana Santos de. Pecuária, agricultura, comércio: dinamização das relações econômicas no termo da vila de Sobral (1773-1799) – 2015. Publicado na dissertação de mestrado.

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